O procurador-geral do Ministério Público do Acre e presidente do Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas (GNCOC), Danilo Lovisaro, disse que é preciso isolar os chefes de facções, caso o Brasil queira mesmo combater as facções.
Em entrevista ao jornal O Globo, na reportagem “Como conexões nas prisões federais ajudaram a tornar o CV nacional e reforçaram migração de criminosos para o Rio”, assinada pelas jornalistas Bruna Martins e Roberta de Souza, Lovisaro acrescentou que lideranças locais ao serem transferidas para presídios federais acabam tendo contato com os verdadeiros chefes do crime organizado, numa espécie de ‘faculdade do crime’.
“Combater as facções no Brasil exige o isolamento de seus chefes. No entanto, quando transferimos esses chefes locais para penitenciárias federais, eles retornam ainda mais fortalecidos após o contato com outros líderes. Uma liderança estadual, sem relevância nacional, acaba se aproximando de chefes mais influentes, estabelece novas alianças e volta ao estado de origem com maior poder e articulação”, disse Lovisaro.
Leia a reportagem na íntegra
Previstas na legislação desde 1984, as penitenciárias federais só começaram a virar realidade em 2006, quando foi inaugurada a unidade de Catanduvas, no Paraná. Na época, houve forte pressão para que as obras fossem concluídas com rapidez para que Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, pudesse ser transferido definitivamente — preso na Colômbia em 2001, ele havia trocado de prisão no Brasil mais de dez vezes ao longo de cinco anos. A ideia era que o então inimigo público número 1 ficasse isolado de tudo e de todos em uma unidade de segurança máxima. Mas o que aconteceu não foi bem assim.
Diferentes processos e documentos apontam que o traficante se tornou um dos artífices do Comando Vermelho que, de dentro de presídios federais, recruta traficantes de todo o país para a nacionalização da facção, numa disputa com o Primeiro Comando da Capital (PCC). É uma estratégia que culmina num fenômeno cada vez mais perceptível nos territórios controlados pelo CV. Órgãos de segurança pública fluminenses já identificam a presença de criminosos de outros 12 estados em áreas sob domínio da facção no Rio, enquanto a facção se espalha por 25 estados e o Distrito Federal, como já mostrou levantamento do GLOBO.
— Hoje, o CV disputa o Brasil com o PCC. Em pouco tempo, não estaremos mais discutindo somente segurança pública, mas, sim, soberania nacional e quem manda no país — diz Carlos Antônio Luiz de Oliveira, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da Polícia Civil do Rio.
Revelações sobre Beira-Mar, apontado pela polícia como um articulador dentro do cárcere, reforçam como os presídios estão na gênese das migrações criminosas para o Rio. Mesmo há 18 anos no sistema penitenciário federal, ele continuava recebendo e enviando recados a outros criminosos. Em 2017, agentes da Polícia Federal encontraram bilhetes escritos por ele picados numa marmita. Dois anos antes, a polícia havia interceptado uma chamada telefônica em que um criminoso de Rondônia, preso no Centro de Ressocialização do Cone Sul, em Vilhena (RO), ensinava como enviar mensagens a Beira-Mar, detido em uma unidade federal a quase 800 quilômetros de distância, na capital Porto Velho.
Na conversa, Luiz Carlos Bandeira Rodrigues, o Da Roça ou Zeus, explica por telefone: “Você faz o seguinte: elabora o informativo e lança no WhatsApp do Matemático. Eu vou encostar ali na cunhada para ver o dia em que pode mandar lá para dentro (do presídio). Vai passar do WhatsApp para o papel, do papel vai para a mão do advogado, e o advogado bate lá e entrega na mão do corre”.
Chancela do alto escalão
Da Roça ou Zeus, por exemplo, teve chancela de Beira-Mar ao chegar ao Rio, pouco tempo após deixar a Penitenciária Federal de Campo Grande. Nascido no Ceará, ele fez fama no crime em Rondônia e, atualmente, desempenha papel direto na briga do CV com a milícia da Zona Sudoeste carioca. Segundo a Polícia Civil, o traficante ganhou força no CV ao tomar a Muzema, no Itanhangá. Como reconhecimento, ele virou chefe do tráfico na comunidade.
Tudo isso ocorreu sem contestações locais, uma vez ele era amigo de Beira-Mar. Os dois, como apontam autoridades, estreitaram laços no sistema penal federal — o histórico prisional de ambos mostra que eles estiveram, de 2019 a 2021, presos em Campo Grande.
— Ele já chegou ao Rio com a chancela do apadrinhamento de Beira-Mar, mas, quando ajudou a facção a dominar a região da Muzema, conquistou de vez o respeito da chefia local — afirmou fonte na polícia sob condição de anonimato.
Conexões pelo país
Para explicar como as penitenciárias federais viraram parte fundamental nesse processo, autoridades e especialistas argumentam que a transferência constante de traficantes para elas e a migração deles entre as unidades permitiram que criminosos de diferentes regiões trocassem informações e criassem elos em todo o país.
Uma mudança legislativa, em especial, é apontada como causa para o estreitamento da relação entre os presos: inicialmente, eles eram transferidos para cumprir 360 dias, prorrogáveis por igual período, nessas unidades. Agora, são no mínimo três anos de reclusão, prorrogáveis pelo mesmo tempo, com possibilidade até de cumprimento de pena.
— Combater as facções no Brasil exige o isolamento de seus chefes. No entanto, quando transferimos esses chefes locais para penitenciárias federais, eles retornam ainda mais fortalecidos após o contato com outros líderes. Uma liderança estadual, sem relevância nacional, acaba se aproximando de chefes mais influentes, estabelece novas alianças e volta ao estado de origem com maior poder e articulação — defende Danilo Lovisaro, procurador-geral de Justiça do Ministério Público do Acre e presidente do Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas (GNCOC).
Em discordância, o diretor-geral da Polícia Penal Federal, Marcelo Stona, garante que a inteligência por trás do funcionamento dos presídios inviabiliza esses contatos:
— O crime não se fortalece dentro do sistema penitenciário. Pelo contrário, ele é contido. As pessoas acreditam que, se o preso X e o preso Y estão na mesma penitenciária, eles conversam e têm convívio, mas isso não é verdade.
Segundo ele, a própria arquitetura das unidades foi estruturada para enfraquecer o convívio entre os criminosos: são 208 vagas individuais, com seis metros quadrados, divididas em quatro blocos. Cada bloco é subdividido em outras quatro alas, com 13 celas. Essa divisão também é repetida nas duas horas de banhos de sol diárias, nas quais os detentos, apesar de estarem em 13, só podem conversar no máximo em trios, e são sempre monitorados. No entanto, um policial penal da unidade de Campo Grande, em anonimato, explicou que os presos costumam conversar nas alas, já que não há isolamento acústico.
Em nota, a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) e a Polícia Penal Federal (PPF) afirmam que todas as comunicações são monitoradas dentro das penitenciárias federais, e que "todas as tentativas de comunicação ilícita mencionadas na matéria foram identificadas e interceptadas pela própria Polícia Penal Federal, o que comprova a eficiência e a integridade dos mecanismos de segurança". A nota segue informando que "os conteúdos interceptados foram posteriormente encaminhados às autoridades competentes, subsidiando diversas operações policiais conduzidas por órgãos de segurança pública, como a Polícia Federal, motivo pelo qual há registros dessas informações em documentos oficiais".
A Senappen e a PF afirmam também que as interações entre presos nas penitenciárias federais são "acompanhadas em tempo real por policiais penais federais, que atuam com elevado padrão técnico e estrito cumprimento da Lei de Execução Penal", e que, a partir de 2019, houve um endurecimento ainda maior de seus protocolos de segurança e inteligência, em razão de tentativas de desestabilização do sistema, inclusive com o assassinato de servidores da Polícia Penal Federal por organizações criminosas.