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Mais que números: histórias que dão rosto à luta contra a violência e o pioneirismo do Acre na busca pela igualdade de gênero

Mais que números: histórias que dão rosto à luta contra a violência e o pioneirismo do Acre na busca pela igualdade de gênero

Recomeço: O valor de viver depois da violência

Há histórias que doem ao serem contadas. Outras, ao serem ouvidas. Mas algumas têm o poder de curar — porque, ao serem ditas, rompem muros, desfazem amarras e constroem pontes. A história de Maria Eugênia é uma dessas. Aos 30 anos, ela carrega no peito não apenas as dores do passado, mas a esperança viva de um futuro que finalmente começa a florescer.

WhatsApp_Image_2025-10-10_at_15.49.18-2.jpegPrograma Mulheres Recomeçando foi um divisor de águas na vida de Maria Eugênia - Foto: Dell Pinheiro

Seu filho, Noah, nasceu há cinco meses. O nome, de origem hebraica, significa "descanso", "conforto", "repouso". E é exatamente isso que ela sente agora: uma brisa calma depois de anos vivendo no meio do furacão.
Mas, para chegar até aqui, Maria atravessou vales sombrios; e o que salvou sua vida não foi apenas a coragem, mas também o encontro com outras mulheres que, como ela, aprenderam que o recomeço se constrói em rede.

Foi nos braços estendidos da Secretaria de Estado da Mulher (Semulher), por meio do programa Mulheres Recomeçando, que Eugênia reencontrou o que já não sabia mais se existia: dignidade, voz e pertencimento.

Prisão sem grades

O primeiro casamento de Maria já trazia os contornos da dor: um companheiro jovem, dependente químico, agressivo. "Ele me batia. Eu achava que aquele era o pior. Mas ainda viria mais", conta, num sussurro que pesa mais do que um grito.

O segundo relacionamento prometia o que não entregou: amor e segurança. Foi assim que, iludida por promessas, ela deixou sua terra e sua família para seguir o novo companheiro até Rondônia.

WhatsApp_Image_2025-10-10_at_15.49.16.jpegNascimento do filho, fruto de um novo relacionamento, significou um verdadeiro descanso - Foto: Dell Pinheiro

"Ele disse que cuidaria de mim. Na verdade, me afastou de todos. E ali, isolada, começou o controle, o abuso."

A casa deles era um caminhão. A estrada, o endereço fixo. E Maria, sem raízes, sem liberdade, sem voz. "Eu não morava em lugar nenhum. Era só ele, dirigindo, e eu sendo controlada. Ele dizia como eu devia falar, me vestir, com quem podia olhar."

Não bastasse a violência psicológica e física, veio a revelação cruel: Maria era soropositiva. Descobriu sozinha, após exames de rotina. O companheiro sabia e nunca lhe contou. Uma traição silenciosa, fatal. “Eu me senti morta por dentro. Mas ainda estava viva. E decidi lutar."

A chave que abriu a porta

A porta de saída apareceu na forma de denúncia. Um dia, após mais uma agressão, Maria fugiu. E foi então que a rede de proteção da Secretaria da Mulher entrou em cena.
"A medida protetiva foi o primeiro passo. Depois veio o botão do pânico. E, o mais importante, o acolhimento. Eu fui ouvida. Pela primeira vez, alguém me escutou sem julgar."

WhatsApp_Image_2025-10-10_at_15.49.16-2.jpegEugênia ainda guarda as marcas do passado. Cada dia é um novo recomeço - Foto: Dell Pinheiro

No grupo do programa Mulheres Recomeçando, ela encontrou espelhos — outras mulheres, outras dores, outros recomeços. A vergonha que a silenciava foi dando lugar à compreensão, ao cuidado, ao pertencimento.
"A gente acha que está sozinha. Que ninguém vai entender. Mas lá eu descobri que muitas passaram pelo mesmo. Foi ali que comecei a respirar de novo."

Com apoio psicológico, jurídico e social, Maria retomou as rédeas da própria vida. Conseguiu um emprego como garçonete, comprou sua casa com esforço e encontrou, com o tempo, um novo parceiro — um homem paciente, respeitoso, disposto a reconstruir com ela.

A força que permanece

Noah é o símbolo vivo desse novo ciclo. "É por ele que eu levanto todo dia. Mesmo com os medos, com a depressão. Eu olho pra ele e sei: “eu venci."

Hoje, Maria ainda carrega cicatrizes — algumas visíveis, outras invisíveis. Mas ela as exibe com dignidade. “Não tenho vergonha da minha história. Ela é difícil, mas é minha. E pode ajudar outras mulheres a não se calarem."
Sobre o passado, ela não deseja vingança, mas justiça. “Ele vai pagar pelos danos. Se não for pela justiça dos homens, será pela de Deus."

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Recomeçar é um ato de coragem

A história de Maria Eugênia não é um conto de fadas. É uma travessia. É a jornada de uma mulher que, mesmo destroçada por dentro, se recusou a desaparecer. E encontrou, no olhar de outras mulheres, a faísca que reacendeu sua luz.

O programa Mulheres Recomeçando, da Semulher, não apenas ofereceu ferramentas. Ele ofereceu algo mais raro: escuta, empatia, presença. Porque recomeçar, no fim das contas, não é apagar o passado — é usá-lo como alicerce para erguer algo novo.
E Maria está erguendo. Tijolo por tijolo. Dia após dia. Com o pequeno Noah nos braços e a esperança — agora não mais disfarçada, mas plena — estampada em seu sorriso. “Eu recomecei. E vou continuar. Porque agora eu sei: não estou sozinha."

O pioneirismo do Acre na busca pela igualdade de gênero

O Acre é pioneiro quando o assunto é Orçamento Sensível ao Gênero (OSG). Em setembro de 2023, o governador Gladson Cameli sancionou a Lei nº 4.168, que dispõe sobre o tema. A ideia é promover a igualdade de gênero, a inclusão social e a redução das desigualdades na distribuição dos recursos públicos.

O OSG consiste na análise das políticas públicas e dos programas governamentais sob a perspectiva de gênero e na alocação de recursos específicos para ações que promovam a igualdade e a não discriminação — de forma exclusiva ou indireta. Ele abrange diversas secretarias e órgãos do governo; no entanto, esta reportagem fará um recorte das ações implementadas pela Secretaria de Estado da Mulher (Semulher).

A secretária de Estado da Mulher, Márdhia El Shawwa Pereira, destacou as ações executadas com recursos do OSG. Para ela, o mais importante é que a lei garantiu às mulheres um espaço no orçamento do Estado, de forma transversal.

WhatsApp_Image_2025-10-10_at_15.48.01.jpegMárdhia El Shawwa Pereira ressalta as ações executadas com recursos do OSG - Foto: Dell Pinheiro

"A importância é que temos um orçamento diferenciado. Conseguimos nos planejar, nos ver no orçamento e, assim, executar as políticas públicas para as mulheres. Temos os programas que executamos aqui. Posso citar o Ônibus Lilás, que é o Semulher Itinerante. Temos as formações, os Centros de Referência de Atendimento às Mulheres. Inauguramos unidades em Cruzeiro do Sul e em Epitaciolândia.

Reabrimos o Centro Especializado em Atendimento à Mulher do Purus, em Sena Madureira. Temos o Impacta Mulher, com cursos nos 22 municípios, contratados via Senac. Mais de um curso por local — dois, três, até quatro — levando autonomia e independência financeira para romper o ciclo de violência", afirmou.

Histórias que se cruzam

O detalhamento feito por Márdhia El Shawwa se confunde com a trajetória de Lorena Luz, 30 anos, [nome fictício; idade real], também moradora de Rio Branco. A jovem foi uma das contempladas pelos cursos profissionalizantes oferecidos pela Semulher, experiência que ela descreve como “uma terapia”.

"Fiz o de customização de sandálias. É uma ótima iniciativa, principalmente para mulheres vítimas de violência e para mães atípicas. Para mim, serviu como terapia, sem contar o acolhimento que recebi das professoras. Foi muito bom", conta.

Ela detalha que foi vítima de violência doméstica nos dois relacionamentos anteriores à chegada à Semulher.

Assim como Maria Eugênia, Lorena acredita que a falta de empatia da sociedade diante de relacionamentos abusivos contribui para o silêncio das vítimas.

WhatsApp_Image_2025-10-10_at_15.50.37.jpegO curso de customização de sandálias oferecido pela Semulher foi uma ‘terapia’, conta Lorena - Foto: Dell Pinheiro

"Acho que a maior dor é a falta de empatia das pessoas, porque o que mais escuto é: ‘Mas foi você quem escolheu essa pessoa. Por que engravidou se ele é agressivo?’. Só que a pessoa nunca mostra quem realmente é no começo do relacionamento", enfatiza.

Mãe de três filhos, Lorena conta que o companheiro tornou-se mais agressivo após a suspeita de que a filha do casal pudesse ter Transtorno do Espectro Autista (TEA). “No meu caso, depois da suspeita de autismo da minha filha, tudo piorou."

Sobre o programa Mulheres Recomeçando, que promove rodas de conversa com vítimas de violência, a secretária destaca: “Elas recebem atendimento psicológico e, ao final, têm acesso a um curso de artesanato aqui na Secretaria. Também promovemos a formação da rede de atendimento às mulheres nos municípios. Já atendemos 14 cidades."

Órfãos de feminicídio

Márdhia El Shawwa explicou que crianças e adolescentes órfãos de feminicídio passarão a receber um auxílio financeiro a partir do ano que vem. O recurso já está previsto no projeto da Lei Orçamentária encaminhado à Assembleia Legislativa do Acre (Aleac) no final de setembro. Serão R$ 1.118.340,00 destinados a essa finalidade.

WhatsApp_Image_2025-10-10_at_15.50.07.jpegCrianças e adolescentes órfãos do feminicídio são abraçadas pelo Estado, com lei também pioneira - Foto: Dell Pinheiro

O auxílio, equivalente a um salário mínimo, será pago ao conjunto dos filhos e dependentes menores de 18 anos na data do óbito da mãe, vítima de feminicídio. A secretária ressaltou que a medida visa amparar essas famílias. Ela explica que a maioria das mulheres assassinadas por companheiros ou ex-companheiros era chefe de família.
“É uma forma de minimizar essa dor. Muitas mães eram chefes de família e, além de perderem a mãe, os filhos perdem a principal forma de sustento”, pontuou.

Papel estratégico na gestão do Orçamento Sensível ao Gênero

A Secretaria de Estado da Mulher do Acre (Semulher) tem desempenhado papel estratégico em todo o processo de implementação do OSG, atuando como órgão articulador da pauta de gênero na gestão orçamentária estadual. Entre as ações, destacam-se:

  • produção de diagnósticos sobre desigualdades de gênero no estado;
    • capacitação de equipes técnicas setoriais;
    • articulação com outras secretarias;
    • promoção de espaços participativos com organizações da sociedade civil.

WhatsApp_Image_2025-10-10_at_15.49.44.jpegA Semulher tem papel decisivo quando o assunto é Orçamento Sensível ao Gênero, ferramenta importante na elaboração de políticas públicas - Foto: Dell Pinheiro

Essa constatação está registrada no estudo "Efetividade do movimento feminista na proteção e promoção dos direitos humanos das mulheres vítimas de violência doméstica: um estudo de caso acerca da Secretaria de Estado da Mulher no estado do Acre", elaborado por concluintes do curso de Direito da Universidade da Amazônia (Unama).

“A atuação da Semulher é crucial para assegurar que a perspectiva de gênero não se perca no tecnicismo orçamentário e que as decisões de alocação de recursos reflitam, de fato, os compromissos com a equidade”, afirmam os pesquisadores.

Outro estudo, este realizado pela Secretaria de Estado de Planejamento (Seplan), mostra que a Semulher atendeu, em 2023, cerca de 6.284 mulheres em situação de violência, com destaque para os casos de violência física e psicológica.

Orçamento do Estado para 2026

Ainda em construção, a peça orçamentária anual para 2026 — que chegou à Aleac no final de setembro — prevê, até a data de publicação desta reportagem, 18 ações programadas com aplicação do OSG, distribuídas entre as pastas de Segurança, Cultura, Saúde e Educação.

Um recorte comparativo entre 2024 e 2025 mostra um crescimento de 28,26% na alocação de recursos para o OSG. Enquanto em 2024 foram destinados R$ 171.143.631,23, em 2025 o valor saltou para R$ 219.507.350,27. 

“Não basta ter só a política aprovada. A gente precisa realmente implementar”, diz procuradora

A coordenadora-geral do Centro de Atendimento à Vítima (CAV), procuradora de Justiça Patrícia Rêgo, do Ministério Público do Estado do Acre (MPAC), reforça que, mais importante do que ter um Orçamento Sensível ao Gênero, é efetivá-lo.

“Essa é uma política importantíssima, pioneira e inovadora. Acredito que o Acre foi um dos primeiros estados a aprovar um Orçamento Sensível ao Gênero. Agora, não basta ter só a política aprovada. A gente precisa realmente implementar. E por que é importante? Porque a violência de gênero, que é um fenômeno complexo e endêmico, deveria estar na prioridade de todas as agendas — do poder público e da sociedade civil organizada. Você só enfrenta a violência de gênero com políticas públicas de prevenção.”

rego.jpgProcuradora Patrícia Rêgo defende mais diálogo entre os órgãos para formação de rede de proteção - Foto: Dell Pinheiro

Para Patrícia Rêgo, é preciso avançar nas políticas públicas, com a execução do OSG pelas pastas proponentes. Ela também defende uma maior integração entre os órgãos na identificação de mulheres em situação de violência — ou seja, o fortalecimento da rede de apoio, que envolve o SUS, o SUAS e secretarias como a de Segurança Pública.

“Se olharmos para o cenário de feminicídio no Acre — que representa a forma mais extrema da violência — e analisarmos os dados, vamos perceber que não estamos falhando na repressão. O feminicídio é um crime de fácil elucidação. Quando ele ocorre, normalmente o autor é alguém próximo, que é preso em flagrante ou preventivamente, e, em regra, é condenado no tribunal do júri. Então, os processos são céleres. Nós não estamos falhando na repressão. Isso pode ser provado. Estamos falhando, claramente, na prevenção. Se você olhar os dados das mulheres que morreram, quase 90% não tinham medidas protetivas. Muitas nunca buscaram o sistema de justiça. Mas elas estavam sofrendo. Essas mulheres passaram pelo SUS, foram ao posto de saúde, ao CAPS, buscaram apoio psicológico. Muitas são do lar, recebem benefícios sociais. Essa rede precisa se comunicar, estar integrada e priorizar esse tema. Isso se faz com capacitação, com transversalização. E, para isso, precisamos de orçamento.”

Dados preocupantes

Dados do Femicidômetro, ligado ao Observatório de Violência de Gênero (Obsgênero), apontam que, entre janeiro de 2018 e 29 de setembro de 2025, o Acre registrou 86 feminicídios consumados e 158 tentativas.

Este texto é dedicado a todas as mulheres que escolheram viver
A todas as mulheres que, como Maria Eugênia e Lorena Luz, escolheram viver. Que encontraram na dor um impulso, e no acolhimento, um abrigo. Que seguem. Porque recomeçar, antes de tudo, é um ato de amor por si mesma.

WhatsApp_Image_2025-10-10_at_15.50.07-2.jpegÍndice de casos de feminicídios no Acre ainda preocupa. Só em setembro foram dois casos confirmados - Foto: Dell Pinheiro

Denuncie. Não se cale!

Se você foi ou é vítima de violência doméstica — física, psicológica, sexual ou patrimonial — denuncie. Tanto a Secretaria de Estado da Mulher quanto o Ministério Público do Acre (MPAC) disponibilizam canais de atendimento:

Secretaria de Estado da Mulher:

  • Rio Branco: (68) 99930-0420
    • Centro de Referência da Mulher de Cruzeiro do Sul: (68) 99947-9670
    • Centro Especializado de Atendimento à Mulher do Purus – Sena Madureira: (68) 99913-6110

Centro de Atendimento à Vítima (CAV) – MPAC:

  • WhatsApp: (68) 99993-4701
    • Telefones: (68) 99993-4701 / 3212-2000 / 3212-2062
    • E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.