Toda noite, o pacto se renova. Minha mulher segura, eu limpo. É uma engenharia de afeto, um atalho que a medicina criou para levar comida ao estômago quando a vontade dele falha: um tubo discreto no pescoço, protegido por uma gaze e coberto por uma faixa presa com esparadrapos, que a gente troca com a devoção de quem cuida de um templo.
A foto engana. Quem vê de longe enxerga um gato branco de dezesseis anos, a barriga tosada pelos exames, o andar cambaleante. Mas quem vê de perto, quem vê dentro, sabe que o bicho não cabe na própria pele. Tem tamanho de gato, mas alma de onça. Uma onça dócil, que nunca mostrou os dentes para ferir, mas que ocupa o espaço com a gravidade de uma fera antiga.
O nosso quarto virou seu santuário diurno, impregnado por uma maresia forte de patê — aquele cheiro de peixe que, para mim, virou perfume de vida. Ali ele descansa, protegido. Mas quando a noite cai, a casa obedece a uma coreografia estrita: trazemos o cão mais novo para dormir conosco, pois ele chora se ficar sozinho, e entregamos a sala para o gato. É o reino noturno dele, isolado e seguro, onde ele reina absoluto, às vezes fazendo companhia para a TV ligada de madrugada pela minha enteada, enquanto eu, no escuro do quarto, tento negociar com o sono e com as lembranças.
Para entender a onça, é preciso voltar a dezembro de 2009. Outra vida, outro eu. Lembro-me de estar no meio de uma discussão áspera com meu irmão, vozes altas, aquela tensão elétrica de dois homens batendo cabeça, quando minha mãe entrou na sala. Trazia nas mãos uma caixa de sapatos e uma sentença curta: "É o presente de Natal".
A tampa aberta decretou o armistício imediato. Se fôssemos cães, teríamos baixado as orelhas e abanado o rabo ali mesmo. Dentro da caixa havia apenas um fiapo branco, minúsculo, que desarmou nossa raiva sem precisar de um único miado.
De lá para cá, ele não foi uma testemunha imóvel; foi um viajante das nossas eras. Quando meu pai adoeceu, ele precisou mudar de casa. Quando o mundo adoeceu na pandemia, ele desceu conosco para a praia. Nos últimos tempos, vivia com minha mãe, numa casa aqui perto. Mas agora, com ela viajando, o destino tratou de trazê-lo de volta ao ponto de partida. Ele está aqui de passagem, um hóspede do seu próprio início, dividindo este teto comigo até o fim de janeiro, quando ela retorna.
Por isso, quando o medo bateu forte dias atrás, eu não soube lidar. Estávamos no quarto, a luz do dia entrando, e ele parecia entregue, recusando a comida. O desespero me subiu à garganta e eu gritei. Não foi uma ordem, foi uma súplica disfarçada de bronca, ameacei tirar tudo, disse que se ele não quisesse viver eu levava a água e a comida embora, usei a lógica estúpida e crua de quem ama e não suporta o adeus.
E ele, contrariando o instinto de qualquer bicho, não fugiu.
Veio na minha direção. Caminhou devagar e parou na minha frente, me olhando no fundo do olho. Não havia medo, nem distância. Havia uma tentativa de leitura mútua. Ele me decifrava, enquanto eu tentava entender o mistério dele. Como se dissesse: "Qual é o problema, humano? Eu ainda estou aqui". Ficamos ali, parados, dois teimosos conversando na língua do silêncio.
Hoje, ele parece melhor. Talvez seja o chamego. Minha mulher, com sua calma, conquistou a confiança dele e trouxe para o quarto uma paz que eu, na minha ansiedade, não conseguia dar. Mas é quando sento na cama e chamo, e ele vem esfregar a cabeça na minha com aquela força bruta e carinhosa, que sinto a vida pulsar. É a nossa assinatura.
O Natal se aproxima, as luzes da cidade já começam a piscar lá fora. Tudo mudou desde aquela caixa de sapatos em 2009, e em breve ele voltará para a casa da vizinhança. Mas o meu pedido, para este intervalo sagrado de tempo, é o mais simples de todos.
Que o cheiro de peixe continue forte pela casa. Que o tubo, a gaze e a faixa sejam apenas detalhes chatos da rotina. E que a minha pequena onça branca decida, por teimosia ou por amor, ficar para mais esta ceia conosco.
Comigo.
Cronista e advogado. - Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.